Pulsação de um quase defunto

Ele levantou com o olhar de sempre. Procurando alguma coisa entre a xícara de café e o jornal do dia que lhe preenchesse a vida. Algo que lhe tirasse daquela merda de vida vazia. Mas o dia ta só começando. Veste o paletó preto, arruma o cabelo, sapato social, um belo sorriso pro espelho antes de sair de casa e ta pronto mais um disfarce de ser feliz. Uma cara enigmática de quem tem algo escondido, um sorriso leve de quem sabe mais do que deveria, e a armação está pronta. Ele sabe que engana bem. Todos acreditam piamente "Lá vai um homem interessante". Mas essa porra de aparência de merda é tudo o que ele tem. Apenas essa aparente felicidade, esse aparente ser interessante. É no escuro em casa quando ele morre de tédio, quando o coração chora a falta de um amor, quando o corpo geme por quem lhe deseje, quando ele sabe que não tem quem se mova por ele. É quando ele percebe que o falso interesse que demonstra ter só o deixa cada vez mais longe de quem possa ser de verdade. E ser alguém de verdade é tudo o que ele mais quer. Mas um dia cansou de tudo isso. Parou de procurar novidades na vida dos outros e resolveu se preencher com tudo o que lhe consumisse, sentimentos, tudo o que lhe pudesse gastar. Precisava ser usado. Precisava se sentir útil. Quebrou a xícara de café, rasgou o jornal, mudou de emprego, ficou sem grana e pensou que ia morrer por isso. Jeans e camiseta ao invés do terno. Mas ele se usou, se usou e arrumou outro emprego, se usou e fez novos amigos, se usou e começou a sentir como é viver de verdade. Foi traído e o coração doeu pra caramba, mas estava feliz. "Fui traído, fui traído!" ele queria gritar isso aos quatro cantos do mundo. Afinal ser traído não é pra qualquer um. É preciso que alguém lhe deposite tempo e dedicação a fim de te trair, o que já lhe é muito favorável afinal, pois é sinal de que você chamou a atenção dessa pessoa por mais cretina que ela possa ser. Se usou e conheceu uma garota num bar qualquer da cidade. Se usou e conheceu uma mulher num restaurante chique. Se usou e foi parar num quarto escuro onde a luz fraca do abajur era o suficiente. Os pêlos do braço arrepiados, era a primeira vez ali, a primeira vez que lhe desejavam como homem, que alguém lhe devorava com todos os sentidos. Num banco de trás de um carro estacionado numa rua qualquer, vidros embaçados e os corpos suados. Na escada do prédio. No elevador. E no roçar de línguas ele sentia que tudo ali era viver, que aquilo era muito melhor que a seção de sábado na frente da tv. Aquilo era melhor, muito melhor. Era ele sendo desejado como sempre sonhou, era ele sendo real pra ele, era ele existindo. Foi na fila do banco e gritou com o atendente, chamou o gerente, "Essa porra de fila não anda?". Agora ele tinha uma vida, não ia mais perder tempo com nada que não lhe fosse útil, que não o fizesse feliz. Não tinha mais medo de reclamar de nada, não tinha mais dúvida se deveria ou não opinar. Falava gostassem ou não. Começou a existir para o mundo. E nunca mais se voltou pro escuro que cobria seus dias antigamente. Não mais se deitou na cama do conformismo. Se desvencilhou das teias do tédio. Já não tinha mais medo de que lhe perguntassem quem era. Agora ele tinha uma história, uma vida pra contar.

Walter Filho

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