Eu, meus quinze anos e a velha angústia

Eu costumava ter mais amigos, costumava sorrir mais. Eu era mais brincalhão, divertido. Hoje eu não lembro a última vez que me diverti de verdade. Não sei quando comecei a arrastar tudo o que trago hoje nas costas. Acho que foi lá pros quinze anos, antes disso já havia uma solidão ali presente, um olhar distante, voltado para dentro, para o mundo que só eu via. Mas aos quinze minha consciência começou a abrir novas portas, com isso me veio muita dor e insatisfação. A falta de autocompreensão e de como a vida funcionava me deixava o constante sentimento de inadequação. As respostas que eu queria ninguém tinha, e as perguntas que me vinham à mente eu não podia fazer. Mas com isso eu já estava mais acostumado, desde criança sempre soube que haviam assuntos e questionamentos proibidos em casa e fora dela. Não precisou ninguém chegar e me dizer que eu não podia falar sobre isso ou aquilo. Sexualidade, fé, doutrinas que ao meu ver eram tão superficiais quanto a poeira em que eu pisava. E assim fui aprendendo certas coisas. Aprendi que menino não podia ter diário por que era coisa de menina. Eu escondia o meu embaixo do colchão, ele tinha capa do Mickey. Aprendi que tudo o que fosse relacionado ao feminino era menor e inferior e qualquer manifestação minha nessa direção era repudiada com fervor. Aprendi cedo que eu teria que ter um mundo só meu e aprender a viver ali sem deixar muita gente entrar por que todas as vezes em que tentei me abrir foram bem desastrosas, lembranças incômodas até hoje. Então me fechei. Aprendi que não podia contar muito dos meus pensamentos, do que eu achava legal e gostava, por que era tudo errado, ruim, e o pior, pecado. Deus me odiava muito. Eu pensava, ainda muito criança, como Deus conseguia não gostar de nada do que eu gostava. O tempo foi passando e percebi que nem eu nem eles conheciam Deus tão bem. Hoje sei que ninguém conhece. O máximo que se pode obter Dele é no mínimo uma amizade carinhosa. É impossível a criatura conhecer na totalidade o criador, sendo ela própria só um pedacinho dele. E os outros pedaços nossos, onde será que estão? Esses são os questionamentos que me incomodam e que me fazem ver a vida de um jeito um tanto mais pesado do que para a maioria das pessoas. E aí vem o incômodo que chega ao ponto de querer gritar por que tudo o você vê ta errado, ta muito errado. Como a moça que me pediu para comprar um pacote de fuba para ela no dia em que eu saía do supermercado com três sacolas de compras e a minha resposta foi não. O não veio no automático. Ajudá-la não iria me deixar mais pobre nem mais rico, mas iria me fazer falta mais na frente, pensei. Para falar a verdade, nem pensei nisso, apenas soltei o não. Soltei o não e outra coisa se soltou dentro de mim, algo que me fez ver o quanto amarrado ao ego eu sou. Mesquinho, pensando fechado ainda, achando que vai faltar se eu agir na abundância, se eu me doar. Apenas seguindo o fluxo do que nos ensinaram. Apegado a competição. Mas só perco quando fecho a mão e deixo de me ver no outro. Um dia, aos quinze anos, fui embora para casa chorando enquanto todos os meus amigos e família iam para uma festa. Pedi a chave de casa a minha mãe e apenas fui embora. Até hoje não sei como ela me deixou ir, não era do feitio dela conceder essa liberdade aos filhos. Naquele dia eu só sentia uma angústia sem nome. Uma dor. Hoje sei que só o fato de estar vivo já me provoca essa sensação, a diferença é que sei administrar melhor minhas dores. Já sofri e chorei demais por não conseguir me encaixar, por não querer também, por que eu sabia que eu estaria pecando se o fizesse, pecando a quem mais importa, a mim mesmo. Se precisei me ausentar no dia da festa foi porque minha alma precisava. Hoje tenho trinta e dois anos e uma vida completamente diferente da que eu imaginava que eu teria quando tinha quinze. Isso quer dizer fracasso? Fracassei aqui? Talvez. Mas dos fracassos externos, ao menos posso me orgulhar das vitórias internas. Para o menino de quinze anos que saía das festas e ia para casa chorando por não conseguir se encaixar, até que finjo bem. Hoje vou à praia, visto uma sunga e finjo ser normal. Ás vezes a vida traz umas alegrias bestas, você olha e vê um gesto de carinho, um pedacinho de amor aqui e ali, mas na maioria das vezes é peso e dor. Não to dizendo isso para desanimar ou desestimular ninguém. Continuem saindo, indo à festas, comemorando os ciclos, se faz sentido para você, faça. Meus ciclos começam e terminam todos os dias, internamente. Quando terminar de escrever este texto já nem serei mais quem sou agora. Minha vida é boa, muito boa. Sempre fui cercado por carinho e muito cuidado. Protegido. Em alguns momentos eu não conseguia enxergar isso, mas hoje olho para trás e vejo tanto cuidado, tanto carinho da vida comigo que chego a me emocionar. As pessoas que me guiaram e me ajudaram, aquelas que importam de verdade, sempre me trataram com muito respeito. E nunca me faltou nada, mesmo nos dias de mais escassez. Os milagres do cotidiano sempre estiveram presente salvando a mim e minha família. Talvez eu devesse reclamar menos. Reconheço minhas bençãos, mas não posso deixar de sofrer e me inconformar com certas situações, e sim, eu preciso reclamar, me incomodar, por que só assim vou conseguir mover alguma coisa ao meu redor. Mas dói e cansa para caramba ter que me submeter a essa merda de superficialidade que a gente tem que se permitir viver para poder ver se consegue se adequar aos valores doentes da sociedade. Tá todo mundo tão doente e cego. Naquele dia em que saí do supermercado e neguei um pacote de fuba para a mulher que me pediu, cheguei em casa, larguei as sacolas do mercado na cozinha, me tranquei no quarto e chorei. Chorei pela minha pequenez e pelo tanto que ainda não me conheço. Chorei como no dia em que voltei da festa sozinho aos quinze anos. Era ela de novo, a velha angústia.