A morte a gente aguenta, a vida não
Um dia desses, minha mãe veio me contar que uma conhecida dela havia falecido, conhecida essa que vivia com uma tia, ou prima, não sei bem, as duas já de certa idade. O comentário a respeito da morte da mulher, não passou de “a fulana não vai aguentar viver sozinha, ela vai morrer também”.
Acho interessante a ousadia que temos em querer dizer o que o outro vai ou não suportar. E o que seria suportar? Não morrer também? Ou levantar e dançar um tango na sala de casa logo depois do enterro?
De certa forma, eu também não vou suportar, porque posso morrer agora, antes mesmo da minha mãe, inclusive. De certa forma, minha mãe, meu pai, meus irmãos, a vizinha de baixo, a vizinha do lado, o presidente, a mulher que pede comida em frente ao mercado, nenhum de nós vamos suportar. Todos nós vamos perecer diante da vida. Então, sim, a fulana que perdeu a prima, ou a sobrinha, também não vai suportar.
A dor de uma perda fica cada vez maior quando a gente não quer aceitá-la. E é muita pretensão nossa dizer por qual dor o outro deve ou não passar, como quando tentamos fazer com que a vovozinha não saiba que perdeu o seu filho amado porque isso a fará sofrer demais e acabará causando sua morte. Mas ela vai morrer, você esconda a informação ou não.
Ela vai sofrer a dor da perda desse filho de qualquer jeito, porque sim, ela vai saber, seja pela boca de alguém ou pela voz da vida, que entrega os segredos de um jeito que a maioria de nós, homens de ciência, letrados, somos incapazes de entender. Negar o direito ao luto é um ato de desrespeito.
A gente só tem a dor que merece, e se colocar como o salvador na frente do outro é interferir em um processo que talvez trouxesse a cura de algo invisível para nós, mas visível e presente para quem a sofre.
Penso que quem faz isso, de tentar poupar o outro da dor de uma perda, o faz mais para evitar o seu próprio sofrimento do que o da outra pessoa. Faz porque não suportaria ver a vovozinha chorando desconsolada por dias a perda de um filho. É chato ter gente sofrendo do lado, a gente não sabe o que fazer, o que dizer.
E não é necessário dizer nada, porque nenhuma palavra alcança uma dor dessas. O silêncio e o choro dizem por si só, e a gente precisa deixar a alma pôr para fora o que ela necessita, sem interromper o seu discurso com “a vida é assim mesmo”, “vai passar”, “você precisa ser forte”.
O que alguém espera quando diz algo como “Você precisa ser forte”? Espera que a pessoa enxugue as lágrimas, se levante, pegue uma vassoura e comece a fazer faxina na casa com um caixão na sala?
Nessas horas, chorar é a maior demonstração de fortaleza que alguém pode ter. Em momentos assim, nem sempre choramos apenas pela perda de alguém, mas sim, um conjunto de dores que deixamos de chorar ao longo da vida até aquele momento, só para então, depois, perceber que a gente aguenta.
A gente aguenta passar por quantas dores a vida nos quiser fazer passar, mesmo que no momento elas pareçam eternas. A gente sempre aguenta. Porque não é quem vai, que carrega o poder de nos fazer melhores, maiores e mais fortes. É quem fica, e quem fica somos nós, que por enquanto, ainda estamos aqui, escrevendo e lendo este texto.
Viver mata. Estar vivo é a maior das sentenças de morte. Seu obituário está escrito desde o dia em que você nasceu. Acostume-se. Ao invés de evitar o inevitável, faça as pazes com ela antes, abrace a ideia do fim antes que ela te consuma, antes mesmo da sua hora chegar.
Mais cedo ou mais tarde, também vamos; e os amores, os encontros, os desencontros, as raivas, os risos, as alegrias, as tristezas, as perdas e os lutos, servem para que no dia da nossa partida, possamos ir mais conscientes e, por ironia, mais vivos de nós mesmos.
Quando minha mãe terminou de contar a causa da morte da sua colega e me falou da ideia de que a prima, ou, sei lá, tia da mulher, não iria suportar, a única coisa que eu consegui dizer foi: ela aguenta.
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