Como ignorar torneiras pingando
A torneira da pia do meu banheiro continua pingando. É nova; meu pai a trocou há pouco menos de um mês. A antiga vinha pingando há dias. Ele tentou consertá-la, mas não conseguiu, foi quando decidiu comprar outra. Mas a nova, logo depois de instalada, também começou a pingar.
Agora, toda vez que entro no banheiro, tenho que lidar com a torneira nova que não para de pingar, me lembrando, todos os dias, dos problemas que eu não posso ignorar. Um deles: a torneira pingando que ninguém sabe como consertar. Meu pai disse que ela veio com defeito.
Há alguns dias tenho tido o mesmo sonho, só muda o cenário, mas a situação é a mesma: eu quero muito ir embora de um lugar — uma escola, uma universidade, uma festa cheia de gente estranha —, mas nunca consigo porque não quero sair do local sem a minha mochila.
O mesmo sonho, quase toda noite. Quem sabe, querendo me lembrar dos problemas que posso ignorar, mas que insisto em carregar, como uma mochila cheia de coisas que não preciso mais. Quero sair desse local, quero largar a mochila e consertar a torneira pingando, mas não consigo. Quem sabe eu tenha vindo com defeito.
A torneira pingando me irrita. Me irrita porque representa a incapacidade que tenho em resolver o básico, o mínimo na minha vida. Não tenho dinheiro para comprar uma torneira nova, nem para mudar a situação em que vivo. A saída é fechar os olhos, respirar fundo e tentar ignorar tudo o que não posso resolver. Isso serve tanto para torneiras quebradas quanto para os medos que ainda não consigo enfrentar.
Tenho sido ótimo em ignorar coisas faz alguns anos. Ignorar foi a forma que encontrei para não enlouquecer, para não sucumbir à vontade de morrer. Mas, de acordo com o meu sonho, parece que ando ignorando a coisa errada.
É a mochila, a mochila carregada de bagagem emocional que devo deixar para trás se eu quiser avançar na vida. Mas, pelo visto, ainda tenho medo.
Tenho medo de largar a alça da mochila porque era nela que eu me agarrava quando precisava fugir dos meninos na saída da escola. Eles me perseguiam pelas ruas do bairro por eu andar do jeito que eu andava, falar do jeito que eu falava, gostar das coisas que eu gostava — por ser eu.
No sonho, a mochila já nem está mais comigo. Já não me pertence, mas insisto em procurá-la. E nessa, vou perdendo a hora de ir embora.
Talvez todas as torneiras quebradas que ignoramos em vida apareçam nos sonhos em forma de mochilas perdidas, das quais não queremos abrir mão, por medo de descobrir que ela já não nos define mais. E quem sou eu, sem o peso de uma mochila que carrego há tanto tempo?
A torneira no meu banheiro ainda vai continuar pingando por um tempo, mas a cada dia percebo menos o barulho da água batendo na pia. Já nos meus sonhos, faz mais ou menos uma semana que a mochila parou de aparecer. O mesmo tempo que levei para escrever este texto.
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