O álbum de fotografias de Ana

Quando Ana tinha três anos, acordava desejando bom dia para os pais e ia dormir dando um beijinho de boa noite neles. Ficava alegre com pouco, brincava com uma colher, morria de rir com o Sapeca, seu cachorrinho. Fechava os olhos quando comia chocolate, se lambuzava toda. Amava olhar o céu à noite, se imaginava voando entre as estrelas. Antes de dormir, fazia a oração que sua mãe lhe ensinou, orava para Deus, o homem que vivia lá, entre as estrelas.

Ana foi crescendo e as coisas foram mudando. Percebeu que não podia contar com seus pais para tudo. Havia a escola, onde ela tinha que lidar sozinha com os colegas que enchiam o saco por causa do seu cabelo, suas roupas, seus dentes separados. A implicância dependia do dia. Algumas vezes ela ria para demonstrar que não tinha se importado. Ali, era melhor rir junto do que ficar sozinha, mesmo que o motivo da piada fosse você mesma. 

Ana percebeu que não tinha tantos brinquedos assim, e que os únicos que tinha já estavam velhos e sem graça. Um dia um colega de sala falou que iria para a Disney nas férias. Naquele dia, Ana entendeu que era pobre e começou a pedir a Deus para ir à Disney também. Ela achava que iria se divertir muito lá, se divertir de verdade. Sua melhor amiga, Dina, também nunca tinha ido à Disney, mas não dava muita bola para isso. 

Na adolescência começou a andar sozinha, se sentia melhor assim. Não falava com ninguém por horas. Acordava e se perguntava o que estava fazendo da vida, achava que tudo o que tinha era pouco e pouco não era o suficiente para fazê-la feliz. Ela queria mais. 

Parou de rezar antes de dormir, não sabia mais o que pensar sobre Deus, decidiu que só iria seguir em frente, sem questionar. Dormia com a janela do quarto fechada, já não olhava as estrelas. Comia chocolates toda semana, devorava uma caixa inteira sozinha no caminho de volta da escola. Era o momento de prazer que se permitia sentir depois da chatice que eram as aulas e os colegas de classe, sempre alienados e infantis. Ana comia os chocolates depressa, com fúria, já não sentia mais a diferença de sabor entre um e outro.

Pintou o cabelo de diferentes cores, se vestiu apenas de preto durante um tempo, usava sempre o mesmo tênis. Começou a beber e a fumar escondido. Só queria se sentir livre. Ia dormir sem desejar boa noite aos pais, mal sabia o que acontecia com eles. 

Depois do colégio, Ana reprovou no vestibular e começou a ter crises de ansiedade pensando no futuro. Precisava de dinheiro. Ela pensava em como iria viver, o que iria fazer da vida, como iria se sustentar. E com medo do futuro ela procurou controlá-lo.

Se inscreveu em vários sites de emprego até conseguir uma vaga em uma lanchonete no shopping. Ana vivia cansada. Não tinha mais tempo nem ânimo para sair. Acabou se afastando de Dina, sua única amiga da época de escola e que ainda insistia em ter uma amizade com ela. Elas se falavam por telefone uma ou duas vezes na semana depois que Ana chegava do trabalho. Às vezes ela caía no sono enquanto conversavam. Dina se esforçava para entendê-la e de certa forma a entendia bem, ao menos era o que Ana pensava.

Ana trocou de horário no trabalho e começou a fazer cursinho pré-vestibular. Nessa época suas conversas com Dina eram quase nenhuma. Ana queria tanto passar no vestibular, ela tinha tantos medos. 

Um cara do cursinho começou a dar em cima dela, ela mal acreditou. Ele não era lindo, não era rico, nem muito inteligente, mas era divertido, parecia ser o tipo que não lhe causaria danos. Então começou a sair com ele, mas só ficaram juntos durante três semanas, tempo o suficiente para Ana descobrir que ele ficava com ela e mais duas garotas ao mesmo tempo, e Ana preferia a monogamia. Ela se envolveu com outros caras, a maioria deles uns escrotos. Começou a ficar cética quanto ao que lhe diziam sobre o amor. 

Quanto mais estudava e trabalhava, mais sem tempo e cansada ela ficava. Mas era assim mesmo, era assim para todo mundo. Ana se preocupava com a falta de dinheiro e o que isso poderia lhe causar no futuro. Suas crises de ansiedade ficaram mais fortes, o vestibular se aproximava e ela não se sentia segura, caía no sono no meio das aulas no cursinho.

Certa noite, Ana chegou em casa depois de um dia exaustivo. Depois de ter perdido o ônibus para o cursinho e ter chegado atrasada na aula; depois de ter se esforçado para entender o assunto de física enquanto tentava se concentrar para não cair no sono; de ter pego chuva, ter andado a pé pela rua deserta e ter se culpado durante todo o caminho por não entender física, por não conseguir um emprego melhor, por ter perdido o ônibus, por ter uma vida pequena e medíocre. 

Ao entrar no quarto, Ana bateu com o pé na quina da cama. De tanta dor, jogou a mochila de lado e caiu no chão. Xingou, mas xingou muito. Deitada no piso, toda molhada e apertando o dedo do pé, Ana começou a chorar. O choro foi crescendo, ganhando força, ficando profundo. O pé já não doía mais. Ela já nem sabia mais pelo o que chorava.

Ana soluçava. Se virou e ficou de bruços no chão, sentindo o piso frio do quarto enquanto as lágrimas escorriam pelo rosto. Estava cansada. Cansada de tudo o que carregava por dentro. Chorou desamparada, como uma coitada, uma ninguém. Chorou sem culpa por estar chorando. Ela só queria sumir.

Depois de algum tempo, Ana se levantou e sentou na cama, pegou o celular e viu que tinha uma mensagem de Dina no Whatsapp. Há mais de um mês que elas não se falavam. A mensagem tinha um emoji de carinha sorrindo e a pergunta “Como vai você?”. 

A mensagem de Dina era um nada, uma besteira, uma pergunta ocasional, feita todos os dias, várias vezes ao dia, por várias pessoas ao redor do mundo. Mas naquele exato momento, ela tinha o peso das mil coisas que Ana deixou de lado para tentar ser alguém que ela nem sabia quem era.

E ela voltou a chorar, mais e mais. Viu o quanto estava péssima. E como se alguém tivesse soprado uma ideia no seu ouvido, uma vontade súbita de ver fotos antigas lhe ocorreu. Ela deixou o celular de lado e pegou o álbum de fotografias. 

Ana com três anos com o Sapeca, ela morrendo de rir enquanto ele lambia seu rosto e balançava o rabo. Ana sentada numa cadeirinha de bebê com o rosto todo sujo de chocolate, de olhos fechados e boca aberta mostrando os dentinhos separados, tão lindos! Por que mesmo que ela não gostava deles? 

Ana chorando na frente da escola em seu primeiro dia de aula, sua mãe a consolando. Em outra foto, as duas novamente, sentadas no piso de madeira em um canto da sala antiga da sua avó. Sua mãe era tão dedicada, ela merecia saber disso, por que ninguém nunca falava isso para ela? 

Seu pai pondo um churrasco na mesa, coberta com uma toalha de plástico estampada de flores, enquanto ela e os primos esperavam famintos. Ana tomando banho de mangueira só de calcinha no quintal. 

E ali, assim, olhando de longe, em perspectiva, tudo parecia tão certo e tão bom e aconchegante e quente e real, firme. Ana encontrou sentido em tudo, e nenhuma falta era mais falta, e nenhuma reclamação valia mais a pena, todos os seus desejos e a loucura por uma vida que ela nem sabia se realmente queria, esses sim, se tornaram pequenos e medíocres diante da vida que ela tinha, que ela já teve.

E uma estranha percepção se abateu sobre Ana naquele quarto, a de que a sua vida não poderia ser medida pelo momento que ela vivia agora, mas pelo todo, era o todo que fazia sentido.

Ela se levantou, tomou um banho, foi à cozinha e fez brigadeiro. Voltou para o quarto, ligou a TV em um programa ruim, desses que passam de madrugada, e deitou na cama comendo o doce. Ana riu da mulher na TV, ela fazia um merchand de vitamina para os ossos. Pegou o celular e viu a mensagem de Dina. Resolveu responder: estou mudando.