Ronaldo e o eco da coisa

 



Duas e vinte da manhã e a coisa dentro do peito não o deixava dormir. Novamente aquela angústia que só quem tem tudo na vida pode sentir.

Ronaldo nasceu em uma família legal, gente boa, honesta. Dormia envolto em mantas quentinhas em um berço quentinho, lindinho, tudo inho, como tinha que ser. Mas Ronaldo chorava sem parar enquanto se arranhava com as próprias unhas. Sua mãe providenciou luvas para o bebê não mais se machucar. Mas ele não chorava porque se arranhava, ele se arranhava porque chorava. Logo aprendeu a se livrar das luvas com a boca, e voltou a se flagelar.

Após esses momentos de fúria vinha o silêncio. Ficava olhando para o nada com o rosto manchado pelas lágrimas, ainda roxo de tanto chorar. Em dias assim, não importava o que os seus pais fizessem, nada conseguia apaziguar o sofrimento do bebê. O levaram ao médico. Ele estava saudável, não havia nada com o que se preocupar, a não ser com o choro sem porquê.

Na infância, Ronaldo frequentou uma boa escola, aprendeu com uma professora gentil, teve colegas legais, que o respeitavam e não faziam bullying com ele. Ronaldo era querido e tudo ia bem. Mas, de vez em quando, Ronaldo caía em um choro desesperado no meio da aula, e não havia quem pudesse consolá-lo.

Mas também havia dias bons, dias em que Ronaldo não chorava na escola. Voltava para casa cheio de novidades das coisas que tinha aprendido, contava tudo para os pais, que lhe davam toda a atenção do mundo, brincavam com ele e o enchiam de carinho. Ele parecia feliz. Mas à noite, Ronaldo ia dormir chorando com uma angústia infantil de quem não sabe explicar por que sofre.

Ronaldo foi crescendo e aprendeu que deveria ser gente boa, respeitar os outros, entrar na religião, não mentir, ser forte, não chorar, beijar apenas meninas, se manter sóbrio, longe das drogas e videogames violentos. Ronaldo foi bem educado.

Na adolescência, estudou em uma ótima escola durante todo o ensino médio, fez bons amigos, tirou ótimas notas, passou no vestibular de primeira, praticou esportes, foi ao cinema, aos shows, recebia mesada e tinha uma galera. Ronaldo não parecia ser um adolescente perdido, não parecia, mas chorava na frente do espelho todos os dias na hora do banho.

Ronaldo se formou na faculdade, fundou a própria empresa e ficou rico. Casou com uma mulher que o amava e fazia questão de lhe dizer isso todos os dias. Teve dois filhos que também o amavam. Vestia roupas boas, viajava três vezes ao ano e tinha uma reputação impecável. Mas sozinho, envolto pelo vidro fumê do carro enquanto voltava do trabalho, Ronaldo chorava sem consolo, como alguém que acabara de perder um amigo que amava muito, muito, mas que ao mesmo tempo nem sequer chegou a conhecer direito.

O padre lhe disse que toda angústia era falta de Deus, indicou oração e confissão. O médico lhe receitou remédios para dormir, o analista adicionou mais uma sessão de terapia na semana. Mas chegou uma hora em que nem os remédios, as orações e a terapia pareciam mais fazer sentido. Foi quando Ronaldo descobriu que existem algumas coisas que você tem que fazer por si mesmo. Ele só não sabia o quê.

Duas e vinte da manhã e a coisa dentro do peito, que não o deixava dormir, permanecia ali, envolta por cobertas quentinhas. Ronaldo escutava o eco de tudo o que não era suficiente. Porque nada na sua vida até aquele momento parecia satisfazê-lo. Nem todo o amor que ele recebeu tinha sido forte o bastante para tirar aquilo de dentro dele.

Sua dor não tinha lógica, seu sofrimento era irreal, ele era amado por todos. Quando mais novo, achava que quando conquistasse todos os 'quandos' da vida, esse sentimento passaria. E ele conseguiu todos os 'quandos': Quando eu me formar, quando eu namorar, quando eu malhar, quando eu tiver um bom emprego, quando eu tiver alguém para me amar, quando eu tiver filhos, quando, quando, quando.

Ronaldo tombou a cabeça no travesseiro quentinho, com cobertores quentinhos. Ele estava de novo no berço. Do lado oposto, a esposa já estava adormecida há horas. A meia-luz azulada da lua refletiu sobre a lágrima que escorreu do olho de Ronaldo, molhando o travesseiro.

Ele chorou calado, mudo, enxugando as lágrimas e prendendo os soluços para a esposa não ouvir. Nada pior do que um marido chorão. Nada pior do que um homem que não consegue amar a si mesmo. As mãos já não tinham luvas, as unhas já não machucavam mais a pele, mas dentro do peito, alguma coisa arranhava com garras afiadas o resto de tudo o que Ronaldo deixou de conhecer sobre si mesmo.

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