Deixa a vida me levar


E lá vai ele com aquela cara bonita demais. Regata branca mostrando os braços malhados e a cor do bronze que faz a filha do padeiro estremecer em lugares que nem sabia que existia no próprio corpo. E lá vai ele com aquele cheiro de macho novo, aquele charme que se mostra quando sorri apertando aqueles olhos castanhos. Faz vídeos dançando funck na sala de casa, come seis vezes ao dia, malha três vezes por semana. Chega o sábado e é dia de se encoxar com alguma piriguete gostosa no baile funck da comunidade. Domingo é dia de sambão e de comer carne (em todos os sentidos) no churrascão da laje até ficar estupefato. Dança agarrado na bunda daquela mulata que desde que ele chegou não parava de dar piscadas, enquanto a galera canta “Deixa a vida me levar, vida leva eu”.
E lá vai ele. E ele definitivamente não é eu. Por quê? Porque penso. Penso, logo complico. Ás vezes queria tanto ser normal, tanto. Mas não consigo porque penso. Penso e me aperto nessa dor que é viver, penso e penso em morrer. Penso e não consigo dar simplesmente tchau depois do rala e rola. Penso e não consigo colocar minha mão em cima da mão da mulata sem que ela me dê o aval nem que seja com um olhar. Penso e logo odeio que me toquem dentro do ônibus. Penso e tenho nojo do cheiro das pessoas. Penso e detesto gente feliz demais. Penso e prefiro me agarrar com um livro o domingo inteiro à passar o dia mastigando carne de gato na laje, e estourar meus tímpanos com a voz da mãe do Michael (isso mesmo, Michael com Ch que soa Maicol) que também é mãe da karolyne (Isso mesmo, karolyne com Y que pronunciado vira karolaine) gritando pra ele largar a prima de dezesseis anos com aquele cabelo alisado à força. Ninguém merece. Eu não mereço.
De vez em quando o gostosão lá do início do texto aparece sem querer. E quando vi já tenho ido, feito, encoxado, dançado, cheirado, me apertado feito sardinha dentro dos ônibus, comido carne (em todos os sentidos) até me estupefar. Quando ele vai embora fico assim pedindo pro colchão me engolir, pedindo pro medo e o nojo que eu sinto desse mundo e de todo mundo me engolir logo de vez. Fico pensando (o que me faz cansar da vida). Fico assim desconcertado, idiota, atrapalhado, sem conseguir passar por nada sem arrastar junto comigo. Fico assim tão eu. De vez em quando preciso de alguém que me leve daqui, pra que ele venha à tona novamente e eu possa ir pra um sambão e cantar a noite inteira “Deixa a vida me levar, vida leva eu”.

Walter Filho

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