Os medos e as armas



Faz um pouco mais de três dias que eu tento escrever este texto e não consigo. Queria abordar o processo de se desarmar, de se livrar daqueles comportamentos que a gente usa como armadura, sabe? Aquela sensação de estar sempre na defensiva, pronto para atacar qualquer um que ouse ameaçar nossa liberdade.

Talvez eu não esteja tão desarmado quanto eu imaginava, por isso a dificuldade em escrever sobre. Depois de alguns minutos olhando para a tela do computador, sem conseguir redigir nada, percebi que ainda posso estar escondendo uma adaga afiada no cós da calça, um canivete no cano da bota ou até uma bomba de gás na manga da camisa. Todas armas metafóricas, mas tão eficazes em afastar as pessoas quanto as reais.

Foram muitos anos me entendendo em um campo de batalha, no qual eu lutava contra o mundo, assumindo uma postura defensiva diante da vida para me proteger das bombas jogadas pelos outros.

Minhas razões não eram falsas, não as inventei, nem me coloquei em um local de vítima porque era legal ser assim. Meus motivos eram todos reais, tão reais que fizeram eu me esconder do mundo, duvidar de mim e julgar tudo o que eu fazia como negativo.

E um dos primeiros lugares onde aprendi a vestir minha armadura foi em casa. Quando os valores da sua família dizem que gays vão para o inferno e você entende-se gay, não tem muito o que fazer a não ser aprender a se defender a seu próprio modo.

E a armadura que eu escolhi vestir incluía a apatia afetiva e o distanciamento social, muito antes da pandemia chegar em nossas vidas. Parei de compartilhar as coisas mais simples, como a alegria por ter comprado uma peça de roupa nova, porque logo entendi que minha empolgação seria cortada pela raiz com um sonoro “Isso é roupa de crente?”

E essa reação castradora me fez usar uma outra arma, o controle. Passei a controlar meu comportamento, a prestar atenção na hora de expressar meus gostos e só revelar o que fosse socialmente aceitável para o meio em que eu vivia.

Controlava as histórias que eu iria inventar para poder sair de casa e ter o mínimo de liberdade que eu conseguia na época. Controlava quais opiniões eu poderia ou não relevar, para evitar os conflitos entre a família. Embora essa arma não funcionasse muito bem aqui, porque os conflitos nunca deixaram de existir.

Controlava a mim mesmo, fingindo que não me importava quando os moleques na rua me chamavam de viado enquanto eu andava de bicicleta com minhas amigas pelo bairro.

E mais tarde, em casa, eu controlava o choro, para não incomodar meus pais.Não podia deixá-los saber o que acontecia. Afinal, por que eu contaria? Para escutar eles dizerem que o problema era eu? Que eu precisava mudar meu jeito de caminhar, de falar e parar de andar com meninas? Eu não precisava de mais ninguém me dizendo que eu estava errado.

E eu não vestia a armadura apenas dentro de casa, também a levava para a escola, onde o bullying era fortíssimo. Novamente os xingamentos de gay por eu não gostar de futebol, ser estudioso, gostar de ficar quieto, ser educado e não falar palavrão. Embora nada disso tenha a ver com ser gay.

E não vou mentir para você, vestir essa armadura me protegeu e me foi muito útil durante um longo período da minha vida. Ela evitou que eu me machucasse de diferentes maneiras, mas também pesou muito sobre mim. Porque a armadura limita nossos movimentos, evita que a gente abrace, que a gente beije. A armadura não deixa a gente receber afeto e nos mantém distantes de muita gente legal por medo de se machucar.

E as armas que eu escolhi naquela época, me deixavam com um peso que eu sozinho não conseguia carregar, porque eu não tinha, e durante algum tempo não me permitia, dividir com ninguém essas experiências. Além do que, ter que dar conta de todos os meus movimentos para manter tudo sob controle me gerava muita tensão.

E mesmo munido de todas as minhas armas, eu ainda sentia medo. E o que são as armas senão o produto do medo? No meu caso, o medo de não ser aceito. E isso durou um bom tempo.

Talvez você não seja uma pessoa LGBT+, mas isso não diminui sua identificação com este texto, insira aqui o seu medo. Você também deve ter aprendido a manusear suas próprias armas para se defender a seu modo daquilo que um dia você julgou ameaçar a sua existência, sua intimidade, seu poder de decisão, seu direito de ser.

Aquela resposta atravessada a uma pergunta simples, aquele bom dia resmungado, fugir de compromissos, evitar intimidade, ter uma atitude grosseira com as pessoas (mesmo que algumas delas mereçam), criar desculpas para não fazer algo que seria até divertido e prazeroso, mas que te colocaria em uma situação delicada em casa, com a família, na igreja ou em qualquer grupo que você faça parte.

Tudo isso também são armas que usamos para evitar ataques repentinos, porque depois de tantas batalhas, a gente entende como ataque até aquilo que não é. Aprendemos a ficar sempre com armas em punho, não importa a situação.

Acredito que se fechar para a vida é a primeira autodefesa que aprendemos a ter, porque se a gente ficar caladinho, quietinho, ninguém vai nos perturbar. Ninguém vai mexer comigo se eu for bonzinho, e se eu for bonzinho o suficiente quem sabe eu até passe invisível por aqui. Se eu continuar abaixando a cabeça, tudo sempre vai dar certo.

Só que chega um dia em que carregar tanta bagagem emocional já não faz mais sentido. O dia em que a vida exige da gente coragem para caminharmos por ela sem armadura alguma, porque adquirimos maturidade o suficiente para nos defendermos de outro modo. Para usarmos outro tipo de arma, a confiança e a fortaleza interior.

Armas letais, contra as quais ninguém jamais pode te derrubar. Aquele lugar dentro de você onde todas as perguntas encontram respostas, onde todos os muros são derrubados, onde mora a certeza inabalável de que você é exatamente quem deveria ser.

E nesse dia, talvez você perceba que as armas que você usou para se defender, e que sim, te pouparam de muitos ferimentos mais graves dos que os que você já tinha, foram muito úteis no passado. Mas agora, elas já não te servem mais.

Não te servem mais porque a vida está te chamando para ser livre, e não há liberdade nos campos de guerra. Eu sei que é difícil abrir mão de alguns comportamentos que adquirimos como defesa. São anos empunhando essas armas. Mas chega um momento em que, ou você as larga, ou fica condenado a viver para sempre aguardando a próxima batalha. E quando se vive esperando a próxima guerra acontecer, você deixa de viver.

E eu entendo se você achar que esse momento ainda não chegou para você. Como falei, há períodos na vida da gente em que fazer uso de algumas armaduras se faz necessário. Mas espero que ele chegue logo, porque junto com ele vem a paz de ser exatamente quem você é. A segurança de quem não precisa mais ser agressivo para poder se impor, de quem não precisa mais se esconder porque entendeu que no fim, vamos todos morrer nesse campo de batalha, e lutar um contra o outro é em vão.

E tão difícil quanto começar a escrever este texto, é finalizá-lo. Eu não estava entendendo porque eu estava me sentindo ansioso desde que a ideia de compartilhar sobre esse tema surgiu na minha mente. E essa mesma sensação está aqui agora, um bolo de alguma coisa subindo e descendo no meu estômago.

Mas agora eu entendo, só agora, depois de escrever vários parágrafos do texto. São elas, as armas. Todas as minhas defesas, juntas, enviando sinais de alerta para o meu painel de controle “EXPOSIÇÃO DEMAIS, EXPOSIÇÃO DEMAIS!”.

Todas as armas que eu usei durante toda a minha infância e adolescência, tão acostumadas a me defender que já entraram no modo automático, e a qualquer sinal de vulnerabilidade elas acionam sozinhas.

E eu não vou mentir para você, não foram poucas as vezes em que eu quis mudar o tema deste texto e escrever sobre qualquer outra coisa. Mas sabe aquele dia que eu falei para você ali atrás? Aquele dia em que a gente é obrigado a deixar nossas armas para trás porque se não a gente não experimenta tudo de bom que o futuro nos reserva? Esse dia chegou para mim.

E eu sei que as minhas armas ainda vão acionar sozinhas de vez em quando, mas cabe a mim, ir lá e desativar o botão do automático em cada uma delas. Vestir essa armadura já nem combina mais comigo.

E é com um baque surdo que eu solto todas as armas agora no chão e deixo a poeira levantar sobre esse campo de guerra. Porque o tempo de falar baixinho, de ficar quietinho, de querer ser bonzinho para tentar passar despercebido passou há anos, eu que estava insistindo em agir no eco do medo, por puro condicionamento mental.

Mas chegou a hora de falar alto, de ser visto, de aparecer e de incomodar se for o caso, porque se tem uma coisa que tantos anos me defendendo me fez aprender, foi reconhecer o guerreiro que habita em mim. E não pense que por eu estar me desarmando eu não sei mais lutar, pelo contrário, eu nunca estive tão poderoso.

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